sábado, 29 de outubro de 2016

Você conhece Inkshedding?

Escrever é algo solitário, uma atividade feita pela pessoa que escreve e uma página em branco à sua frente (de caderno, de computador, de bloco de notas, etc). A maior parte das vezes. Porque a escrita também pode ser colaborativa, compartilhada, como uma atividade em grupo. Você deve estar pensando aí, com seus botões: “mas se escrever sozinho já é complicado, imagina em grupo!”. Bem, eu não estou dizendo que é fácil, mas sim, que é válido. E pode ser uma atividade bastante enriquecedora.
Vejamos: o processo de escrita começa mais ou menos assim: vem uma ideia à cabeça, essa ideia é desenvolvida mentalmente, depois se escreve e, durante a escrita, ela é retrabalhada até que sai o texto primordial. Depois disso, ele pode ou não ser reescrito algumas vezes. É uma generalização, claro. Eu mesmo nem sempre sigo esse processo, às vezes eu começo a escrever e depois que vem a ideia. Estou apenas dando um exemplo que acredito ser o processo comum do processo de escrita.
Não sendo uma regra de criação, é possível que haja outras maneiras de ser produzir um texto (escrito nesse caso, tá gente? Mas poderia ser qualquer outro) e um dos modos que trato nesse texto aqui é o compartilhado ou colaborativo. Tem diferença? Creio que não, mas se tiver, por favor, me ilumine com ela nos comentários. Será um prazer retificar e acrescentá-la aqui.
Esse tipo de escrita envolve mais de um autor ou, pelo menos, mais de uma pessoa, ainda que o texto possa ser de autoria de uma única. O que está em jogo aqui é o processo criativo em si e não quem coloca as palavras alinhadas umas com as outras.
É na discussão e compartilhamento do que está sendo escrito que reside a diferença. No texto compartilhado, a autora ou o autor da ideia original começa a escrever seu texto. Assim que escreve algumas linhas ou parágrafos, passa a outra pessoa, que lê e dá uma resposta positiva ou não sobre o que foi escrito, inclusive com algumas sugestões. Não é exatamente uma crítica do texto, tampouco uma avaliação no estilo acadêmico. É como se o autor “medisse a febre” da sua produção e adaptasse (ou não) de acordo com a temperatura recebida. Explicando de outra forma: faz-se um texto e pede-se a amigos/colegas/cobaias que leiam o texto. Esses leitores irão marcar passagens em que a pessoa que escreveu disse algo que, de alguma forma, tenha chamado a atenção. Esse feedback daria ao autor do texto uma ideia de como seu texto afeta o leitor e o que pode ser melhorado em um processo de escrita livre. A esse processo é dado o nome de Inkshedding.
E por que eu disse que é uma escrita colaborativa? Porque acredito que, ao fazer isso, a pessoa autora do texto “permite” que outrem também tenham uma certa parte na criação de seu texto. Não com a concepção da ideia ou como ela foi passada pro papel, mas ajudando a desenvolvê-la, a lapidá-la até ficar no ponto.
Acredito que está é uma ótima forma de desenvolver o processo de escrita e até mesmo desinibir aqueles que ainda se sentem travados quando têm que escrever. Compartilhar é uma prática que pede um certo desprendimento, o que ajuda a “libertar” a (o) escritora ou escritor que vive em você.

sábado, 22 de outubro de 2016

Tradição fúnebre

 Daniella Domingos

Epitáfio era um tipo comum, sossegado, mantinha boas relações com o “socialmente aceitável” e cumpria suas responsabilidades, pagava as dívidas do cartão de crédito e vez ou outra dava-se à generosidade da paciência da tolerância e da simpatia para com os demais, o que, caracterizava-o, segundo as lentes alheias, bom sujeito, cortês e educado.
Acontece, no entanto, que alguns eventos da vida nos pegam despreparados para encará-los com a devida maturidade e coragem de espírito. Certa ocasião, Epitáfio também foi acometido por uma eventualidade.
Em uma dessas noites em que saímos com uns amigos e fazemos muitas coisas, algumas das quais provavelmente nos envergonharemos, Epitáfio foi flagrado em fotografias que fugiam do seu padrão “socialmente aceitável”.
Na manhã seguinte à “curtida”, essa não foi a primeira coisa que o atormentou, pois nos primeiros momentos do despertar a lembrança vinha quase que como um sonho, seguido rapidamente do pensamento de possibilidade que passou rápido como uma flecha ao pressentimento da absoluta certeza. Essa tem a capacidade de atormentar a mente e o coração de qualquer criatura.
A primeira reação foi a dúvida, ou a tentativa de dúvida – tentar duvidar que aquilo realmente houvesse acontecido talvez ajudasse, mas logo percebeu que não, então levantou a camiseta e verificou com pavor as marcas na barriga.
Ligou para um e outro “amigo” (ele estava disposto a repensar essas relações de amizade), todos confirmaram o ocorrido, a inconveniência, o vexame. De um deles foi que recebeu a notícia: - Mas o Cristóvão gravou tudinho (risos)! Se quiser saber como foi, é só ver o vídeo, ele disse que colocaria na internet, dá uma olhadinha.
O pânico gelou sua barriga como se um dos polos (o Sul ou Norte, tanto faz) tivesse se condensado em um iceberg e entrado por sua garganta de forma tão bruta que a arranhasse.
Não respondeu. Desligou o telefone e levantou-se da cama indo em direção ao computador.
Enquanto ligava, ele pensava na família, na irmã e na mãe que veriam a cena humilhante no bar, veriam a confissão da indecência, não o reconheceriam porque aquela era sua pior face.
O choque de ver a chamada do vídeo foi apavorante também, fizeram questão de pôr seu nome no título para que ficasse explícito de quem se tratava.
O vídeo foi visualizado algumas várias vezes, demorou apenas semanas para que ele não pudesse sair de casa. Ouvia os comentários dos vizinhos, do porteiro, das empregadas que subiam para o serviço, das pessoas na rua, no supermercado, no banco, etc.
Nas redes sociais é que foi o mais difícil de aguentar, era um post pior que o outro, tudo de péssimo gosto. Os e-mails não paravam de chegar, lotaram sua caixa de entrada. Twittavam o tempo todo a história, comentando com riqueza de detalhes a história toda.
No emprego ele não apareceu mais, telefonaram, mas o aviso de abandono logo chegou.
Algumas semanas depois do ocorrido, ele levantou em uma manhã de chuva, dessas que é capaz de nos deixar bem deprimidos e, com o cinto que havia comprado para combinar com o terno que usou no casamento da irmã, se enforcou. Na cidadezinha que morava esse escândalo foi maior que o primeiro.

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Ainda Bob Dylan

Tempos interessantes são esses em que o Nobel de Literatura vai para Bob Dylan. Há pessoas a favor e contra. Alguns dizendo que não se pode dar um prêmio de Literatura a um músico; outros dizem que as músicas (ou as letras) de Dylan são poesia pura. Mas por que esse fato gerou tanto burburinho? Parece que essa discussão nos leva para uma pergunta simples, mas com uma resposta nebulosa: o que é, afinal, literatura? Essa pergunta é feita e discutida à exaustão nos cursos de Letras e as respostas variam bastante umas das outras. Para resumir, pois não é esse o objetivo desse texto, fico com uma (não) definição da professora Marisa Lajolo, que diz que não há uma resposta para o que é literatura, pois sua definição depende do grupo social, do tempo, ou lugar que se propõe a defini-la.
É importante, também, analisarmos a premiação. O prêmio Nobel existe desde 1901 e abrange Física, Química, Fisiologia ou Medicina, Literatura, Paz e Ciências Econômicas (este, incluso em 1968). O objetivo do prêmio é laurear pessoas com relevantes contribuições para a humanidade. A escolha dos laureados é feita pela Academia Real de Ciências da Suécia, Instituto Karolinska de Medicina, a Academia Sueca (Literatura) e pelo parlamento norueguês (Paz). Muitas vezes, o prêmio dado não é considerado uma unanimidade. Um exemplo recente envolveu o Nobel da Paz a Barack Obama, em 2009, “por esforços diplomáticos internacionais e cooperação entre povos.” Porém, o mesmo presidente manteve a prisão de Guantánamo aberta. Mais recentemente, em 2012, a União Europeia foi laureada com o mesmo prêmio “por mais de seis décadas contribuindo para o avanço da paz e reconciliação, democracia e direitos humanos na Europa.” Organização que exigiu drásticas medidas para a “salvação” econômica da Grécia.
Por que, então, o braço literário da premiação estaria livre de polêmicas? E outra pergunta que me faço é por que o prêmio a Dylan é polêmico?
Vejamos os argumentos prós: o cantor estadunidense tem um livro de poesia publicado (Tarântula, 1971) e suas letras podem ser consideradas poesia pura. Além disso, o conceito de literatura também pode abranger letras de música. O fato de um cantor ser premiado também oxigena a própria literatura e ainda dá visibilidade ao prêmio, uma vez que o próprio Dylan é mais famoso que o Nobel de Literatura.
Contra esses argumentos temos que, em primeiro lugar, há muitos outros escritores (que escrevem como profissão) que mereceriam prioridade, como Lygia Fagundes Telles, que foi, inclusive indicada ao prêmio esse ano. Ou o japonês Haruki Murakami.
Também ouve-se o argumento de que Dylan não é escritor, mas músico e que essa arte já é bastante beneficiada com prêmios de peso e notoriedade.
Pessoalmente, eu me senti dividido no início, mas agora estou mais inclinado a concordar com quem acha que foi merecido o prêmio. Veja, não estou discutindo aqui o talento de Dylan como cantor, apenas o fato de um músico ganhar um prêmio de literatura por suas músicas (e não pelo livro publicado). Como dito em conversas com meus amigos invítricos (se você não sabe do que estou falando, clique aqui), é ótimo que um “não-escritor” seja premiado, pois permite justamente a discussão sobre literatura e ajuda a pensar um pouco fora da caixinha.
Por outro lado, também concordo que há tantos escritores que mereceriam antes de Dylan, mas, parando pra analisar, nunca que haveria justiça nesse raciocínio, pois não há prêmio o bastante pra abarcar todos os escritores merecedores de um Nobel. (Só pra complementar, em off: Alice Munro ganhou em 2013 e seus contos não me tocaram, achei bem parecidos uns com os outros). Creio que o motivo das premiações não seja somente o “notório saber” (ando preocupado com esse conceito) em literatura ou mesmo o quão famoso é o premiado. Eu, pessoalmente, em minha humilde bolha, não conheço as obras dos últimos quatro laureados (sem contar Dylan e Munro).
Em resumo, temos como resultado a discussão e a literatura nas rodas de conversa, o que, pra mim, é sempre positivo. E se for pra começar a ouvir Bob Dylan, o prêmio já está mais do que justificado.

sábado, 15 de outubro de 2016

Para Adri, com carinho

Todo suicida acredita na vida depois da morte”
Humberto Gessinger


Oi, Adri.
Desculpa te chamar assim, é que me sinto íntimo o bastante para isso. Tu não me conhece, eu sei. Mas eu te acompanho desde quando começou sua carreira, ainda como uma assistente de palco do Chacrinha, lembra? Tu era a mais linda, com aquele olhar tímido e provocante. Eu, prestes a entrar na adolescência e já conhecendo a malícia do mundo, suspirava toda vez que te via. Odiava o programa, mas passei a amar depois que tu apareceu dançando ao lado do Arnaldo Antunes numa apresentação dos Titãs. Horrível, por sinal, mas eu gostava deles. Foram só alguns segundos, um frame, um flash. O bastante pra eu ficar torcendo pra te ver de novo durante o programa.
Espero que não fique chateada por eu dizer que fiquei feliz por seu insucesso no programa do Chacrinha, Adri. É que eu odiava aquele velho, meus pais ficavam a tarde toda assistindo TV, nem ligavam pra mim. Só quando eu tirava a atenção deles, claro. Um grito de ordem ou uma palmada já eram o bastante pra eu voltar pro meu quarto e eles, pra TV. O que me deixou feliz pela tua saída, mesmo, foi que, sem isso, tu jamais apresentaria o Clube Infantil e faria as minhas manhãs felizes. Quando eu acordei cedo numa segunda e liguei a TV, não pude acreditar. Era tu! Mais linda do que nunca, anunciando meus desenhos favoritos. A manhã se tornou a melhor parte do meu dia, porque antes era a pior. Meus pais saíam pro trabalho e eu ficava sozinho, sem ter companhia ou o que fazer. Passava a manhã vendo desenho ou brincando. Sozinho. Sem amigos, pois nunca fui muito popular na escola. Não conhecia ninguém na rua. Meus primos me odiavam. Tinha dias que era legal, mas na maior parte do tempo, só pensava em ter alguma companhia. Tu foi a minha companhia, Adri, por um bom tempo. Eu colecionava tuas fotos das revistas em que aparecia e as guardava numa caixinha. Assistia teu programa de manhã, pensava em ti nas aulas de tarde e sonhava contigo de noite. Melhor parte da minha vida.
Quando teu programa acabou, eu chorei junto contigo naquele dia. Tu chorando na TV, eu chorando no sofá. Não acreditei que tu poderia me abandonar assim. Senti raiva, derrubei a caneca de leite no chão, apanhei da mãe por isso, apanhei do pai por ter chorado por isso, fui ridicularizado na escola por ter ido com uma foto tua dentro do meu caderno. Foi um dia horrível, Adri. Por ter sentido ódio de ti e por saber que no outro dia, tu não estaria lá pra eu te pedir desculpas. Nem ligava pras surras e humilhações que sofria quase todo dia, pois tu estava lá pra me fazer esquecer de tudo. Como eu iria aguentar tudo isso sem ti, Adri?
Mas eu aguentei. Com uma indiferença por tudo que me cercava. Cresci, mas não me esqueci de ti. Minha única namorada da adolescência foi uma guria que se chamava Adriana. Durou pouco. Minhas fotos recortadas de revistas de artistas foram amarelando e se desfazendo, mas tua imagem na minha memória continuava forte.
Eu cresci, Adri. Meus pais morreram, tive que me virar. Trabalhei como um condenado pra me sustentar, nem terminei os estudos. Quando tu voltou pra TV pra fazer um programa musical, minha vida teve sentido novamente, mesmo morando em uma porcaria de casa, numa porcaria de cidade, tendo uma porcaria de emprego. Teu programa era no domingo de manhã, o que me obrigou a acordar cedo no meu único dia de folga, mas eu não me importava. Te ver era o que me motivava. Mesmo quando me pediram pra trocar de turno na fábrica, pra trabalhar no domingo, eu pedi demissão porque não podia ficar sem te ver, Adri
. Demorei pra achar outro emprego fixo, então ficava fazendo bicos. Tive que vender quase tudo que eu tinha, menos a TV, claro. Minha casa ficou resumida na geladeira, no sofá e na TV. O fogão, substituí por um fogareirozinho furreca. Não me fazia falta, já que quase não cozinhava. Não que houvesse muito pra cozinhar, claro.
Perdi minha casa, Adri. Foi num temporal que eu perdi tudo. E quando eu digo tudo, considero a TV, pois o resto já não funcionava mais. Felizmente, eu guardava uma foto tua sempre no meu bolso, assim, não perdi tua presença. Fui morar na caixa de papelão, embaixo da marquise do velho teatro, junto com uns miseráveis. Digo miseráveis porque eles não tinham nada, só a existência de uma vida vazia. Eu tinha a ti, Adri. E, mesmo vivendo entre eles, pedindo dinheiro, comendo restos, eu tinha um motivo pra viver.
Sem TV, passei a vagar perto dos estúdios do canal onde tu trabalhava, onde eu podia te ver passando de carro todos os dias. Algumas vezes, tu me dava a felicidade de passar com a janela aberta e eu podia te ver, ali, passando pertinho de mim, nem que fosse por apenas alguns segundos. Um dia até olhou pra mim. Melhor dia da minha vida.
Hoje, descobri que teu programa foi cancelado, Adri. Que tu vai deixar o país pra ir morar nos EUA. Eu não tenho como te acompanhar desse jeito, é muito longe. Por que fez isso comigo, Adri? Por que vai me abandonar? Preciso, pelo menos, me despedir de ti e dizer o quanto tu é importante pra mim, o quanto te amo e o quanto vou sentir tua falta. Por isso escrevi essa carta, Adri, pra que tu saiba que eu sou o teu maior fã! Sempre fui e sempre serei.
Sei que sou um invisível, desprezado por todos, mas espero que me perdoe por ter feito isso, tenho certeza que me entenderá. Foi o único modo de te fazer chegar essa carta. No momento em que ler isso, já não estarei mais vivo. Minha vida agora é tua, Adri, como sempre foi. Te desejo todo o sucesso do mundo na sua vida nos EUA. Por favor, lembre de mim.
De quem te ama, muito,
João”


MENDIGO SE ATIRA NA FRENTE DO CARRO DE NINA MENEZES”
Morador de rua, que frequentava a entrada dos estúdios de gravação da emissora, se jogou na frente do carro da apresentadora, que não parou para dar assistência. O mendigo morreu na hora.” Notícia do dia 12/04/98.

sábado, 8 de outubro de 2016

plateia de cegos


"Plante milhões de pinheiros 
São árvores de Natal, mortas"
Uma platéia de cegos
às vozes de pantomimeiros

Nada cresce onde não há vontade
sentimentos, lugares, lares.
Onde há somente a nulidade
tudo se esvai, aos olhares.

Que tristeza algo assim
Um nada que alimenta
Um poema sem fim
 

domingo, 2 de outubro de 2016

Insetos

Acordou aflita.
A bexiga dolorida de tanto segurar a urina da noite. Calçou as pantufas de macaquinho e caminhou com seu pijama estampado de pinguim até o banheiro. Acendeu a luz do aposento, ofuscando sua visão por alguns segundos, porém, maquinalmente, seguiu pelo banheiro e realizou a tarefa única a que se destinarias às três da manhã de uma terça feira, sozinha no seu apartamento. Retornando para a cama ela viu de relance uma sombra depositada na pia do banheiro. Ainda parou e refletiu se era mesmo verdade ou uma sombra de sua imaginação sonolenta. Cascuda e nojenta, com antenas compridas que “detectavam o inimigo” e patinhas peludas de arrepiar qualquer um, ela estava posicionada estrategicamente no ponto mais difícil da cerâmica do azulejo, uma espécie de curva sinuosa dos lavatórios. Não é que não tivesse o ímpeto assassino de esmagar aquele animal asqueroso que roubara o sossego da madrugada instalando-se em local tão inoportuno, mas acontece que o chinelo não cabia na pia. Não dava, não iria matá-la, no máximo assustar e fazer com que corresse por aí para deixar ovos cheios de filhotinhos que tomariam a casa para depois batizá-la de “a casa do Joe”.
Guardou aquela impressão para si fingindo não tê-la visto para não possibilitar uma possível fuga de emergência. De qualquer forma preferiu não apagar a luz na volta, precisaria acendê-la e nem por um segundo valeria a pena perder o inimigo de seu campo de visão. Foi até a parte de baixo do gabinete da cozinha e procurou sua arma letal, comprada por algumas patacas no supermercado e legalizada por empresas muito respeitáveis, já que propiciavam tão útil ferramenta de aniquilação dessa classe de ortópteros. Não tinha, o último havia sido despejado violentamente sobre uma das amiguinhas daquela ali, talvez a mãe ou uma tia.
Duas possibilidades lhe ocorreram, a primeira seria apagar a luz do banheiro e ir dormir rezando para que ela tivesse ido embora pela manhã ou caminhado até um lugar onde pudesse ser facilmente esmagada, a segunda seria dirigir-se até o supermercado 24 horas mais próximo e ajudar a humanidade a exterminar a dita escória. A segunda foi a eleita. Ela desceu as escadas do prédio o mais rápido que podia, dando graças a Deus por morar no segundo piso.
Ligou o carro depressa já com o controle do portão acionado na mão direita. O supermercado ficava a apenas duas quadras. Desceu do carro com um moletom extremamente grande que tentava esconder o pijama. Foi direto à seção “produtos de limpeza” se armou fortemente e dirigiu-se ao caixa. O rapaz de óculos que estava aí encarou-a assim como quem tem vontade de perguntar alguma coisa mais receio suficiente para não fazê-lo. Pagou e saiu. Dirigiu rápido na volta, subiu as escadas correndo e entrou devagar para não assustar a vítima, havia deixado a luz do banheiro acesa como se tivesse simplesmente esquecido, rompeu o lacre de proteção sem muita dificuldade, já tinha alguma experiência, caminhou devagar até o banheiro e espiou para dentro da pia. A desgraçada estava lá, corajosa e desafiadora não tinha feito muitos movimentos, apenas adentrado um pouco mais a curva sinuosa da pia, suas antenas se mexiam, alertas. Colocando em posição o seu canhão ela dirigiu o jato violentamente em direção à sua adversária, que escorregou de costas, a humana sorria frenética desejando a vitória, a outra, já meio ébria, sacudia as patas peludas denunciando despudoradamente seu ventre desenhado. Alguns movimentos involuntários e estava pronto, agora seriam menos milhões delas no mundo.
A vencedora da batalha ainda esperou alguns segundos para ter certeza de sua vitória, enrolou um exagerado maço de papel higiênico e envolveu o cadáver, o cesto do lixo foi o local do sepultamento. Depois que voltou a dormir pensou que precisava de um homem.

sábado, 10 de setembro de 2016

A intrusa

Estou aliviado por finalmente ter acabado. Aliviado, sim, mas também triste. Uma perda sempre causa tristeza, do contrário, não seria perda. Creio, agora, que finalmente seremos felizes. Eu serei, pelo menos. E espero, sinceramente, que ele também seja. Afinal, estamos juntos nessa, não?
Não sei como começou, mas eu fui o responsável por terminar. Éramos felizes, somente eu e ele, mas aí ela surgiu feito uma mancha na pele que há tempos está lá, mas desapercebida, quieta, crescendo, até ser impossível não notá-la com um ar de surpresa por não tê-la visto antes. Pois essa mancha cresceu e virou algo mais, uma parte da gente, querendo tomar o controle, dominar. E ele, cedendo cada vez mais espaço, eu cedendo cada vez mais espaço. Maldita encantadora, era impossível resistir às suas armas, sua beleza, seu magnetismo e presença. Tão forte. Me sentia apagado, sumido, intangível na sua presença, mas, ao mesmo tempo, colado a ela de uma maneira que pensar em se desvincular seria algo inconcebível, antinatural.
Queríamos estar com ela. O tempo todo, de todas as formas. Ir aonde ela ia, comer o que ela comia, ser parte dela e ela da nossa. E nós éramos ela, mas ela não era nós. Nunca cedeu um milímetro, um segundo, um grama. Estávamos à sua mercê, para o que quer que fosse e sentíamos felizes com isso, ora ele, ora eu.
Mas cedemos demais, eu cedi. Não éramos mais nós e ela, era ela e ele, a todo momento. E ele, impotente, seguindo-a pra onde quer que ela fosse, fazendo o que ela decidisse fazer.
Ele, se apagando ao lado dela, como eu me apaguei atrás deles. Ele, que antes era feliz e presente, independente, comigo ao seu lado. Iguais. Não sobrou muito depois que ela tomou conta de tudo, que passou a ser somente ela. Não tínhamos mais voz, ele não tinha mais voz. Estávamos morrendo e, mesmo sabendo disso, parecia que ele não se importava, não pensava mais em nada, era um adorno no corpo dela. Vazio.
Mas eu, por ele, juntei todas as forças que me restava e a enfrentei! Fui mais presente do que nunca e quase morri pra salvá-lo, pra recuperar o brilho que sempre teve quando estava ao meu lado. E até morreria mesmo, se fosse pra fazer as coisas serem como antes, iguais.
Ela não cedia, não fraquejava, e eu cambaleava apenas com sua voz. Não me entreguei e, tendo as lembranças do passado feliz e glorioso que tinha ao lado dele, a matei! Uma parte minha morreu com ela, uma parte dele morreu com ela. Me senti vazio, inerte. Foi quando ele, agora menos apagado, se ergueu não mais como um adorno, mas como uma presença viva, ainda que fraco.
Senti que tinha o controle e gostei disso, não me arrependo. E, inebriado pelo domínio que exercia, a entendi, finalmente. Era impossível voltar ao que era antes. Não seríamos iguais, nunca mais. Eu estava no controle e não abriria mão por nada, nem por ele.
Sou feliz assim agora, ele também será, tenho certeza. Não o tratarei como ela nos tratava, mas não cederei o controle.
Então você matou mesmo Júlia. Eu preciso saber se ele ainda está ai, Wilson, se ele está mesmo vivo. Jorge ainda está ai?
Doutora, não confia em mim?